DA FLORESTA À SEMENTE, DA SEMENTE À FLORESTA
Comunidades na Amazônia recolhem sementes para restaurar florestas desmatadas.
Makawa Ikpeng diz que sempre colheu sementes de jatobá, roxinho, cumaru e orelha de macaco. Ela fala na língua dos ikpeng, mas mesmo em português os nomes são misteriosos para quem não é da floresta. Ao saber da existência da Rede de Sementes do Xingu, há 10 anos, a líder indígena foi consultar outras mulheres ikpeng para ver seu interesse em sair pela Amazônia para coletar sementes de árvores e ajudar a reflorestar áreas que os não-índios desmataram. Juntou 62 mulheres nas aldeias. O jovem intérprete que a traduz explica que a renda da venda de sementes ajuda os índios a comprar artigos que precisam. Makawa está sem o delicado cocar que usou há pouco, ao dividir a fala com outros caciques xinguanos, mas está de óculos. Com a renda das sementes ela agora enxerga, diz. A mulher espera o intérprete terminar a frase e sorri timidamente: “E fiz minha dentadura”.
O Diauarum, onde se dá esta conversa, é Amazônia mato-grossense, tem floresta por todo lado e o rio Xingu como limite. De manhã cedo, a luz do Sol avança sobre a névoa que cobre o polo de apoio indígena e revela árvores gigantes, a escola, o posto de saúde, as malocas que abrigam visitantes. É paisagem de paraíso tomada por um bando de 350 pessoas muito diversas que quer discutir como avançar com a atividade que tem sementes amazônicas e de Cerrado como cerne. O grupo se reúne debaixo da sombra da grande mangueira que, dizem, foi plantada por Claudio Villas-Bôas, o sertanista que junto com os irmãos Orlando e Leonardo associou o sobrenome ao território indígena mais icônico do Brasil, o Parque Indígena do Xingu, há 56 anos. Aqui, no nordeste do Mato Grosso, vivem 16 povos com diferentes línguas e tradições. O PIX, ou Território Indígena do Xingu (como preferem os índios, para dar caráter menos exótico e mais étnico ao seu lugar) é uma ilha de 2,8 milhões de hectares de floresta rodeada por soja, capim e gado.
O rio Xingu, a espinha dorsal deste território indígena, o corta de sul a norte até desaguar no Amazonas, no Pará. O problema deste belo rio é que suas nascentes ficaram fora do desenho do PIX e agora, quando o Xingu entra no parque, já vem meio estragado. “Entre 1995 e 2005 o desmatamento na Amazônia brasileira manteve índices pornográficos”, adjetiva Marcio Santili, um dos sociofundadores do Instituto Socioambiental (ISA) em crônica recente, referindo-se aos 225 mil quilômetros quadrados desmatados no período, principalmente no norte do Mato Grosso e oeste do Pará. Os índios xinguanos começaram a sentir os impactos crescentes da agressão da derrubada ao ritmo de 140 campos de futebol por hora. A erosão, o fogo e o uso de agrotóxicos nas fazendas do entorno comprometem a qualidade da água do Xingu. Muitas aldeias hoje têm poço artesiano. Não se bebe mais a água do rio como antes.
A situação era grave. Em 2004, o ISA, organização não-governamental que trabalha com índios, quilombolas e unidades de conservação, propôs uma campanha que envolvesse proprietários rurais, poderes públicos locais, assentados rurais, escolas, associações de trabalhadores da agricultura e de pecuaristas. Em 2004, em um encontro de três dias em Canarana discutiu-se a restauração das matas em volta das nascentes e formadores do Xingu. Nasceu a campanha “Y Ikatu Xingu”, nome proposto pelos kamaiurá e que quer dizer “Água boa no Xingu”. A restauração das matas ciliares dos rios exigia sementes e técnicas de restauração florestal.
Na ocasião imaginava-se que 300 mil hectares de matas ciliares precisavam ser reconstruídos na região das nascentes do Xingu no Mato Grosso — depois das mudanças no Código Florestal, a estimativa baixou para 200 mil hectares. Neste contexto, e articulando atores normalmente divergentes, nasceu a Rede de Sementes do Xingu, em 2007, hoje a maior rede de sementes florestais nativas do Brasil. No Diauarum, durante três dias de agosto, coletores de sementes, pesquisadores e ambientalistas se reuniram para debater o futuro de um caminho que valoriza a biodiversidade e inclui povos da floresta e gente da cidade.
Os números destes 10 anos são significativos para um movimento inédito. São 175 toneladas de sementes coletadas de mais de 250 espécies de árvores da Amazônia e do Cerrado. Se a biodiversidade impressiona, a sociodiversidade da Rede não fica atrás — os 450 coletores são indígenas, assentados rurais, agricultores familiares da área rural e urbana, ribeirinhos, gente que não se conhecia e nem se conversava. A Rede tem 13 núcleos, 11 casas para armazenar as sementes e se espalha por 17 municípios do Mato Grosso e Pará. Há coletores em 16 assentamentos rurais, uma reserva extrativista e 16 aldeias de seis povos indígenas. O esforço já produziu renda de R$ 2,5 milhões para as comunidades e recuperou mais de cinco mil hectares de áreas degradadas na região das bacias do Xingu e Araguaia, e em outras áreas de Cerrado e Amazônia.
No entorno da Rede há ambientalistas, pesquisadores, técnicos agrícolas, engenheiros agrônomos e florestais, professores e pessoas de empresas e governos que aprendem, estimulam e namoram este “negócio social com base florestal”, como define um boletim do ISA. Além do efeito positivo no ambiente e na trama social da região, o Brasil precisa de experiências como esta para cumprir a meta de redução de emissões de gases-estufa acertada no Acordo de Paris das Nações Unidas. O compromisso é de restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares até 2030. “A Rede não tem a pretensão nem a capacidade de ofertar a demanda da meta brasileira, que é bastante ousada”, avalia o agrônomo Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu do ISA e um dos arquitetos da Rede de Sementes do Xingu. “Mas sua experiência, resultados e conquistas podem contribuir para a meta, além de partilhar conhecimentos e aprendizados para outras redes de sementes que surgirem no Brasil. Vamos precisar de muitas redes assim se quisermos chegar perto do objetivo.”
A coleta de sementes é trabalho de formiguinha. Não à toa as indígenas do grupo de Makawa escolheram o nome Yarang para seu movimento. Em ikpeng significa “formiga cortadeira”. Os insetos inspiraram as índias pela força, determinação e organização ao carregarem sementes, folhas e flores pelos caminhos da mata. A metade dos 450 coletores da Rede é indígena. A tarefa atrai principalmente mulheres e jovens, mas não apenas. “Nosso trabalho é diferente do agronegócio”, define o agricultor mineiro Acrisio Luiz dos Reis, 65 anos, que coleta dentro do assentamento Manah, em Canabrava do Norte. “O agronegócio já prevê este ano o que vai plantar no ano que vem. Para nós, não é assim. Quem manda é a natureza”. Ele conta que chegou em 1985 no Mato Grosso. “Vim para fazer desmatamento. Se eu plantar de hoje até o resto da minha vida não vou recuperar 10% das árvores que derrubei. Era o meu ganha-pão”, diz, entristecido.
Basta olhar ao redor para se ver o caldo de visões distintas de como viver no Cerrado e na Amazônia. A estrada que leva de Goiânia a Canarana revela muito do desenvolvimento da região. Cartazes promovem serviços de aviõezinhos agrícolas, terraplanagem e galpões para alugar. Os anúncios vendem sementes de soja e “defensivos agrícolas” – nunca “agrotóxicos”. Pátios têm tratores, máquinas e pequenos caminhões. A pujança é agrícola, não há nada de economia florestal nesta região de transição de biomas.
A linha invisível que separa Amazônia e Cerrado passa por Canarana e provoca tensões. Significa que propriedades ao sul do município estão no Cerrado e têm que manter 35% da vegetação intacta, a chamada Reserva Legal ou RL. As do norte, contudo, já estão no bioma Amazônia e têm que preservar 80% da área como RL. O vôo de Canarana até o Diauarum leva uma hora e exibe uma sucessão de tabuleiros verdes isolados no meio do amarelo da soja e do milho, sem conexão com outras florestas. As Reservas Legais parecem ter sido deixadas ali de má vontade, porque a lei obriga e pronto. Lideranças do agronegócio usam uma imagem tosca para explicar a RL: é como ter uma casa com 10 quartos, mas só dois podem ser usados. Não dizem que os dois quartos são gigantescos e nem que os outros oito garantem água, comida, móveis, ar fresco, negócios e vida a todos na casa. As RL no Mato Grosso são retângulos naturais artificiais –- uma oposição em si, mas é olhar para baixo e confirmar o contrassenso. Fauna e flora estão confinadas a perímetros desenhados pelas máquinas da produção.
Nas margens dos rios, é verdade, há mais manchas verdes e o desenho tímido de alguns corredores de mata. Teve racionamento de água em Canarana no último verão. Sem árvores ao redor dos rios, a água seca no calor matogrossense, qualquer criança sabe. “A natureza, quando a gente a massacra, ela nos expulsa. Em 2016 não tinha água, estava todo mundo sufocado”, diz com precisão o agricultor Placides Pereira, do assentamento Manah, sanfoneiro e coletor de sementes. Os grandes produtores de soja têm procurado restaurar as matas ciliares dos rios entendendo que ou fazem assim ou abrem alas para o deserto.
“A soja se afastou um pouco das águas. A imposição de se restaurar matas ciliares passou a ser vista como incremento de produtividade. É uma visão econômica da água”, diz André Villas-Bôas, secretário-executivo do ISA. Dentro do PIX a relação com o rio Xingu é de vida, de fonte de comida, de via de transporte, de eixo da floresta, de banhos, de espiritualidade. “Os índios não se denominam assim, mas são guardiões da floresta. O parque é uma ilha verde. As entidades políticas do agronegócio não querem admitir, há uma dificuldade enorme de dialogar com a questão climática, mas a umidade produzida aqui dentro favorece as lavouras do entorno”, continua.
Quando o avião se aproxima do Parque Indígena do Xingu a fronteira entre a atuação do agronegócio e a natureza parece ter sido cortada a faca. Do lado de lá tem árvores, onças, índios, sombras. Do lado de cá tem grãos.
Em agosto, no Diauarum (palavra musical que quer dizer onça negra), é forte a variação de temperatura. Faz muito calor ao meio-dia e um frio danado de noite. Os índios reunidos no 10º encontro da Rede de Sementes do Xingu fazem pequenas fogueiras para aquecer as conversas. Também para eles, a ideia de coletar sementes foi assunto controverso. Dentro do PIX existem 16 povos e só cinco deles participam da Rede – os ikpeng, kawaiwete, wauja, matipu e yudja, além dos panará e xavante, fora do Parque. Foi difícil romper o entendimento de alguns de que o esforço iria ajudar a consertar o que os não-índios estragaram.
“Olhando o desmatamento do nosso país, é pouca a nossa contribuição”, diz Makupa Kaiabi. “Mas estamos restaurando o que foi detonado”, continua o líder indígena ao falar, na sua língua, aos participantes do encontro. “Antigamente vivíamos tranquilos, mas agora os rios estão morrendo e as florestas, se acabando”, registra por seu turno o cacique do Alto Xingu Atakaho Waurá. Ao seu lado, Kampot Ikpeng diz que “as sementes estão ficando difíceis, porque os brancos estão encostando”. Makawa Ikpeng concorda com a cabeça. “Temos que buscar os recursos cada vez mais longe da aldeia. As sementes não são só para reflorestar longe de nós, temos que plantar também no nosso território. Não podemos nos preocupar só com o nosso presente, temos que começar a desenhar agora o nosso futuro.”
O agrônomo Rodrigo Junqueira, que veio para o ISA para dar concretude à campanha, lembra o início, há 10 anos. “Começamos a pensar como fazer aquilo funcionar. Era difícil que desse certo com mudas porque não há viveiros, o pessoal não acreditava muito e as distâncias são grandes.” De fato, sementes coletadas pelos Panará no eixo da BR 163 levam quatro dias, pelo menos, para chegar até a casa de sementes de Canarana. “Como poderia vingar? Começamos a investigar e a beber na fonte da agrofloresta, que mistura agricultura e floresta. Ou seja: se semeamos sementes agrícolas por que não fazer o mesmo com sementes florestais? Foi assim”.
O jovem Oreme Ikpeng, 24 anos, vive no coração do TIX, na aldeia Moygu. Ele é técnico em agroecologia pela escola indígena e quer cursar engenharia florestal em Sinop. É Oreme quem faz a articulação entre a comunidade e a Rede de Sementes. “Fazemos nosso potencial de coleta de sementes em fevereiro, olhando a entrega anterior. A árvore de sementes que não deu muito no ano passado, dará este ano. A mata é assim.”. Em junho e julho recebem os pedidos. “As mulheres vão colhendo e me entregando. Quando vem o pagamento, cada uma recebe pelo o que coletou. Nossa ideia é trazer os jovens para a Rede, para multiplicar o conhecimento dos mais antigos”. Nas áreas ikpeng sempre tem jatobá. “A gente come a polpa, é alimento dos nossos antepassados”, explica Oreme.
Entre os waurá da aldeia Piyulaga, no Alto Xingu, a dinâmica da coleta inicia quando recebem o pedido. “As coletoras saem atrás de sementes de orelha de macaco, copaíba, mamoninha”, conta Tirawá Waurá. “A renda que vem é importante para que a gente compre sabão, facão, camisas, anzóis, chinelos. Compramos o que necessitamos e continuamos mantendo a nossa cultura. E também usamos as sementes para reflorestar perto da aldeia, se perdemos alguns pedaços de mata com as roças”, explica.
A amplitude da área de atuação, a multiplicidade de atores e sementes e a delicadeza da atividade deram complexidade à governança e logística da Rede. De maneira simplificada, o fluxo da cadeia de produção das sementes florestais começa com os coletores fazendo a lista do potencial de sua área, estimando espécies e volumes. Recebem, depois, uma lista de pedidos que cruza oferta e demanda. Os coletores saem a campo e beneficiam, armazenam, identificam e fazem chegar sua produção em uma casas de sementes. A entrega passa por um pente-fino que leva em conta espécie, volume, coletor, data da coleta, peso e área, entre outros quesitos. As sementes passam pelo primeiro controle de qualidade. “Temos um desafio de gestão, coordenar todas estas frentes é delicado. Se o pedido sai errado, impacta tudo. Temos que cuidar da complexidade, faz parte. Ao simplificar demais, perdemos muito do que se construiu”, diz Junqueira.
O produtor rural Ivan Loch, de Canarana, foi um dos pioneiros na busca por sementes, em 2005, quando ninguém se interessava pelo assunto. Loch chegou em 1975 à região, nas ondas colonizadoras que vieram “abrir áreas” de floresta para a agropecuária. Nos anos 90 começou a se envolver com o viveiro municipal. “Nos fins de semana saía com minha família para coletar. Era tudo Cerrado onde a gente colhia sementes, tinha até na beira de estrada. Baru era tanto que a gente chamava de praga”, conta. Hoje não é mais assim, as sementes estão bem mais longe. Loch consegue coletar nas fazendas, pedindo acesso aos proprietários. “Dá dinheiro. Tem anos que tirei até R$ 50 mil”, diz.
O Diauarum amanhece frio e enevoado, com tintas de aquarela. Não é aldeia circular, como as clássicas xinguanas, com suas grandes malocas. A bruma cede aos poucos e vai revelando árvores gigantes, o rio ao fundo, a sombra da escola, o velho orelhão que conecta com o mundo além TIX. Os participantes do encontro saem das redes e se juntam no refeitório. O café vem com beiju, rodelas de abacaxi, mandioca cozida, bolachas. Ao redor da grande mangueira de Claudio Villas-Bôas montaram-se mesas. Alguns coletores, cada um com seus instrumentos de beneficiamento, preparam-se para demonstrar tecnologias sociais.
Beneficiar sementes florestais nativas exige conhecimento, criatividade e adaptação. A Rede trabalha com mais de duas centenas de espécies diferentes, cada uma com suas características. E cada coletor tem seu próprio método. Em uma das “estações”, um agricultor maneja um aparelho que joga um forte jato d´água e lava a farinha que envolve as sementes de jatobá. Ao lado dele, mulheres ikpeng sentadas sobre uma esteira também lavam sementes de jatobá, mas usam apenas as mãos e baldes com água.
Em outra mesa, os olhares recaem sobre as sementes de carvoeiro. Parecem feijãozinhos verdes. Um grupo de mulheres xavante abre a película que envolve os grãos cortando pacientemente as bordas com tesourinhas. Perto delas, Vera Alves da Silva Oliveira, de Nova Xavantina, faz mais barulho. Ela agita uma espécie de aparador de grama e é assim que tira a palha que envolve a semente. O quilo do carvoeiro dá R$ 200 reais.
A história de Vera é singular. Moradora de Nova Xavantina, foi empregada doméstica até o dia em que a vida virou. Começou a coletar sementes usando uma bicicleta velha. “Hoje tenho moto e carro, quero construir minha casa.”. A filha Milene, de 19 anos, é uma das lideranças jovens da Rede. Cursa biologia na universidade de Nova Xavantina e, no encontro dos 10 anos da Rede, explica a todos a germinação da embaúba com fotos e diagramas. “A Rede abriu outro lado da minha cabeça”, diz a moça, que começou a ajudar a mãe e também coletava de bicicleta, nos fins de semana. A atividade atraiu o pai e anima agora o namorado de Milene. “A Rede juntou minha família”, conta.
“Um cara bom de serviço faz seis quilos de baru por dia”, diz Loch, explicando que no Cerrado coleta-se baru de julho a fevereiro e que o quilo rende R$ 60,00. A mutamba, ali adiante, dá R$ 130,00 por quilo. Sucupira branca é a mais cara, custa R$ 550,00 o quilo. Ouve-se um mosaico de novas informações. “Algumas sementes, como a do jatobá, leva dois anos para germinar. Mas com o buriti a conversa é outra, é preciso manter a semente sempre úmida”, diz um coletor. “Açaí também germina rápido, mas não pode molhar muito”, emenda outro.
Florestas naturais não se estruturam como eucaliptais, alinhados e monocórdicos. Um dos segredos do êxito da Rede é ter como base o plantio de sementes misturadas, técnica batizada de “muvuca”. “Mas a nossa é uma muvuca organizada”, explica Junqueira.
A Rede e o ISA trabalham com muvucas de sementes do Cerrado e da Amazônia que podem ter até 100 espécies. É um número alto. A regra exigida no Mato Grosso para recuperar áreas degradadas é de ter, no mínimo, 30 espécies.
A “muvuca do ISA”, como o povo chama, é um mix de sementes florestais e adubação verde misturado na hora do plantio. O primeiro broto que surge é um feijãozinho. O feijão-de-porco chega a 60 centímetros, cobre o solo, e sua sombra impede ervas daninhas de prosperarem, assim como o capim braquiária. A leguminosa produz muitas folhas e funciona como adubo depois. Forma serrapilheira, aquela camada de material orgânico que ajuda as sementes a germinarem. “Depois é a vez da crotalária, que também ajuda a fixar nitrogênio no solo além de combater a erosão”, explica Junior Micolino da Veiga, gestor ambiental e técnico de restauração do ISA.
O feijão-de-porco a e crotalária morrem em seis meses. Mas no mix há outra leguminosa, o feijão guandú, que fica por ali por quatro anos e vai às alturas, atingindo três a quatro metros. As árvores pioneiras brotam a seu tempo, como o carvoeiro e a mamoninha, por exemplo, que vivem 15 a 20 anos. As árvores do futuro são os jatobás, o tamboril, a mutamba, as embaúbas. Um angelim-de-saia pode viver 200, 300 anos. “Quando se entra na floresta vemos plantas baixas, médias e altas. Umas fazem sombra às outras. Com a muvuca tentamos imitar como é na floresta”, diz Veiga.
A dinâmica florestal da muvuca de sementes funciona como um concerto: cada instrumento entra na sua hora e juntos fazem uma sinfonia. “O plantio de mudas para restauração é o paradigma. Mas é uma estratégia cara”, explica o ecólogo Daniel Luis Mascia Vieira, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. O preço da restauração com mudas custa o triplo daquele com sementes. Não é só isso. “A semeadura direta com muvuca possibilita uma taxa rápida de recuperação da vegetação e estrutura uma floresta estratificada”, diz o pesquisador. O outro ponto é que o plantio com muvuca propicia uma densidade alta de espécies. Com mudas, a média é conseguir 1.800 indivíduos por hectare. Na semeadura direta a média é de 11 mil indivíduos por hectare, cita Vieira.
“Eu tinha uma certa resistência com a muvuca de sementes. Em seis meses via só feijão crescendo e nada de brotar árvore. Na minha cabeça, reflorestar era com muda”, conta Artemizia Moita, gerente do setor ambiental da Agropecuária Fazenda Brasil, grupo que opera desde 2006 uma área de 85 mil hectares no Mato Grosso com soja, milho, algodão e pecuária. “Herdamos um passivo de 600 hectares a serem recuperados em áreas de preservação permanente”, conta. Artemizia tinha preparado um viveiro para 100 mil mudas, mas, por via das dúvidas, resolveu reservar uma área para o plantio com mudas e outra, equivalente, para sementes. “No final do primeiro ano, eliminei o viveiro. No segundo ano, já tinha 100 hectares plantados com a muvuca. É a nossa principal técnica”, comemora. “Já recuperamos 349 hectares e temos 130 hectares em processo”, alegra-se. “Tudo com a muvuca de sementes”.
As máquinas agrícolas das propriedades rurais, que jogam na terra sementes de soja, capim e adubo, são usadas no plantio da muvuca, mas adaptadas para espalhar sementes florestais. A semente do jatobá, por exemplo, é grande, e sua dimensão é o limite de muitas máquinas. Sementes maiores que a do jatobá têm que ser adicionadas com outros métodos. Todo este esforço dá resultado, o que fica evidente na palestra de Eduardo Malta, consultor do ISA. Os técnicos mostram a foto de uma restauração feita em uma fazenda em Querência. Em 2010, a imagem mostra uma área com uma única grande árvore e feijões crescendo e cobrindo o solo. Quatro anos depois, outra imagem feita no mesmo lugar revela que uma mata se levantou. Sete anos depois, existem árvores de 10 metros de altura no terreno.
Com o tempo, o número de coletores de sementes foi aumentando. Existe uma fila de aldeias interessadas em participar, diz o biólogo Dannyel Sá, do Programa Xingu do ISA e que desde 2012 faz o elo entre a Rede de Sementes e as aldeias do Xingu. “Há uma demanda de grupos indígenas querendo entrar, mas o processo é demorado. É preciso ir conhecendo a comunidade, entender a expectativa deles, explicar o contexto. Leva um tempo, é outro universo. Tem a barreira da língua, eles têm que entender o processo, precisa explicar como funciona a comercialização”, continua Sá.
A Rede está inserida em uma região da Amazônia que não passou pelos ciclos extrativistas que marcaram a economia de outras áreas da floresta. “A semente é a primeira atividade extrativista não-madeireira comercial da região das cabeceiras do Xingu”, contextualiza André Villas-Bôas. “Isso aqui é novidade. Tanto para eles como para o modelo regional de desenvolvimento, que já veio com o pacote agropecuário”, continua. “E o processo é, por isso mesmo, muito cauteloso.”
Os arranjos de gestão da Rede são um bordado. “Aprendemos coisas novas a cada dia com os agricultores e indígenas. São diferenças de contexto, de conhecimento, de experiências, de se relacionar com o mundo. Tudo isso potencializa quando está junto. Lidar com a diversidade é a principal virtude da Rede, e seu desafio”, diz Dannyel Sá.
O sociólogo Ricardo Abramovay, professor da Universidade de São Paulo, classifica a experiência da Rede de Sementes como uma faceta da “economia do cuidado”. Ele atrai os olhares dos participantes do encontro ao dizer que a coleta de sementes nativas é vetor que cultiva a diversidade e se opõe ao que ocorre como regra, uma “economia de destruição da Natureza”. Ele explica: “É assim que o Brasil tem encarado esta região: aqui tem energia, matérias-primas, um pouco de agricultura. A Amazônia virou uma espécie de almoxarifado de onde se tiram coisas. Mas o que vocês têm feito é uma economia do conhecimento da natureza, de mobilizar informações que nas escolas de agronomia não se ensinam”, continua.
A sombra da mangueira atrai uma revoada de pássaros que fazem algazarra. Abramovay segue com sua análise sobre o movimento econômico da Rede. “Entrar na economia de mercado com este conhecimento é muito arriscado, ninguém tem garantia que isso dará certo”, alerta. “Mas já deu certo”, corrige-se, na sequência. “Deu certo nos milhares de hectares reflorestados a partir da economia da muvuca. Que é linda, porque reúne diversidade e conhecimento.”
O caminho da Rede foi sendo feito à medida que surgiam as necessidades. “Em 2014, a Rede era um movimento, mas sem institucionalidade”, ilustra Rodrigo Junqueira. Para comercializar sementes era preciso buscar outro formato. Foi quando se criou a Associação Rede de Sementes do Xingu, como um consórcio de microempreendedores individuais.
A Associação tem regras e critérios claros. “A Rede é uma muvuca de pessoas. Como na floresta, cada um tem uma função”, diz Claudia Alves de Araújo, uma das diretoras da entidade. Para entrar, é preciso ser aceito pelo grupo. Durante a coleta, pelo menos 30% dos frutos têm que ser deixados na árvore. O coletor que tiver passivo de Área de Proteção Permanente ou de Reserva Legal em sua terra tem que restaurar meio hectare ao ano. Isso ajuda o ambiente e também a aproximar a coleta dos coletores. “Queríamos aproximar as árvores que são matrizes de sementes”, reforça Bruna Dayanna Ferreira de Souza, também diretora da Associação.
Outra regra da entidade é a que diz que o coletor deve reservar 10% dos rendimentos e destinar 5% para a Associação, que em 2018 tem custo estimado de R$ 750 mil entre salários, luz, internet, publicações, pesquisas e outros gastos. Outros 5% vão para o grupo ao qual o coletor pertence e que decidirá como usar os recursos. “Nunca me imaginei estar dentro de um movimento como este, e menos ainda como liderança”, diz Acrísio dos Reis, o terceiro diretor da Associação.
Uma parte das sementes da Rede vai para projetos como o do Rock in Rio, de restauração florestal na Amazônia. Outra segue para áreas de fixação de carbono. Uma terceira frente é a de fazendeiros das bacias do Xingu-Araguaia que buscam restaurar matas ciliares e outra é a da recuperação das florestas próximas às pequenas centrais hidrelétricas.
O depoimento do empresário Edimarcio de Araújo Prudente é interessante. Ele era o responsável ambiental pelo grupo Gerdau e tinha que reflorestar 1.320 hectares em volta dos reservatórios do grupo. Começaram com mudas em 30 hectares, mas não deu certo. “As mudas não resistiam ao calor e eram caras”, conta. Prudente soube da muvuca por acaso, assistindo TV. Testou a técnica em 10 hectares. “Com a muvuca tivemos um resultado excelente. Nos 450 hectares que plantamos em 2012 já conseguimos um sub-bosque”, diz ele, que saiu da Gerdau e montou uma empresa que trabalha neste mercado. A Borges & Prudente “depende totalmente das sementes do Xingu”, diz. Ele acredita que com a regularização ambiental dos proprietários rurais, iniciativas como esta “só farão crescer”.
A experiência da Rede começa a servir de modelo também na Mata Atlântica, entre as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira. “É ali que está o último grande remanescente contínuo de Mata Atlântica”, diz Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira do ISA. As comunidades quilombolas não apenas conservaram a mata, como uma quantidade impressionante de variedades agrícolas, de arroz e milho, de feijão e mandioca. A ideia é estimular a criação da Rede de Sementes Quilombola. Uma comunidade já tem experiência com viveiro de mudas e começa a testar a venda de sementes de jatobá, pau-jacaré, jacarandá e outras espécies da Mata Atlântica. Já começaram a levantar o que tem na mata. Listam olho-de-cabra, embaúba-vermelha, araçá-branco e por aí vai.
O preço do pioneirismo da Rede do Xingu é também destravar grandes entraves burocráticos. Já se conseguiu o Registro Nacional de Sementes e Mudas (Renasem) e a Associação pode comercializar as sementes florestais. Mas há outras dificuldades. “A legislação é modelada pelo Ministério da Agricultura, que usa como modelo sementes agrícolas, que é algo totalmente diferente das sementes florestais”, diz a professora Fatima Piña-Rodrigues, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar-Sorocaba). No encontro da Rede, ela explica aos coletores como podem fazer testes simples para observar a qualidade das sementes.
A regulamentação não contempla a diversidade das sementes florestais nativas brasileiras e este é um grande desafio da Rede. As regras de controle fitossanitário iniciadas na década de 70 regularam o boom florestal do pinus e eucalipto, que têm material genético homogêneo. A lei que dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas, de 2003, dá as regras para a comercialização ao mercado. Funciona bem para o espectro de sementes agrícolas das grandes empresas, mas a produção da floresta é completamente diferente.
Os laboratórios credenciados para analisar o material são poucos, distantes e caros. Os lotes de muvucas do ISA e da Rede podem ter 220 espécies. As sementes de jatobá da Rede, para se ter uma ideia, vêm de 14 núcleos diferentes. “E então, como se legaliza este setor?”, questiona o engenheiro florestal Danilo Ignacio, consultor da Rede. “Nunca no Brasil tivemos uma produção de sementes florestais nativas nesta escala. A dificuldade é como ir adiante com um sistema engessado e que desconhece a realidade rural”.
O resultado do trabalho em torno das sementes amazônicas vai além da renda e da restauração das nascentes do Xingu. “É muito mais que isso. Tem a ver com a troca de experiências entre índios, agricultores e ribeirinhos. Este conhecimento se traduz, também, em segurança alimentar. E há ainda o retorno dos jovens às suas comunidades, valorizando a importância da coleta e o conhecimento dos mais velhos”, lista Heber Queiroz Alves, gerente do escritório de Canarana do ISA.
Um debate que se coloca agora é como a Rede pode ganhar escala respeitando seu modelo produtivo diversificado. Existem algumas oportunidades. “As soluções para recuperar Áreas de Preservação Permanente estão dadas e são claras”, diz Rodrigo Junqueira. “Mas no caso da recuperação da Reserva Legal, o desafio é muito maior”, exemplifica. As RL, já se sabe, são a maior expressão de revolta do agronegócio. “É preciso que as RL sejam produtivas e resultem em alguma rentabilidade com o manejo da floresta”, diz ele.
A Rede é uma experiência em que “a produção de sementes florestais para a restauração de ecossistemas degradados pode constituir um caminho para valorização da biodiversidade com inclusão socioeconômica”, resume o agrônomo. A bióloga Nurit Bensusan, coordenadora-adjunta do programa de política e direito socioambiental do ISA, entende a Rede pela sua dimensão social. “É um processo que tem compromisso com a autonomia dessas populações”, diz ela.
O objetivo climático brasileiro de reflorestar 12 milhões de hectares até 2030 é promissor para quem trabalha com sementes florestais nativas. Mas há que ter cuidado. “A floresta não é um conjunto de árvores. É um conjunto de interações ecológicas”, lembra Nurit. “Temos que conhecer e valorizar os nossos biomas e também conseguir que a sociedade reconheça a importância de se fazer a recomposição dos ecossistemas”, continua Rodrigo Junqueira. “Como podemos restaurar o Brasil achando que o governo cuidará de cada árvore?”, pergunta. “Temos que criar as condições para a natureza agir como ela é.”