Brasil usa tecnologia pioneira para gerar corais de proveta
Uma tecnologia inédita no Brasil está sendo desenvolvida no sul da Bahia. Trata-se da criação de um banco de gametas congelados de corais para preservar espécies da extinção.
Desenvolvida pela Rede de Pesquisas do Instituto Coral Vivo, com apoio da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, a iniciativa usa técnicas de criogenia e de reprodução assistida para garantir que, na eventualidade de um evento extremo que leve à extinção dos corais, eles possam voltar à natureza pelas mãos da ciência.
Os efeitos das mudanças climáticas e o consequente aumento da temperatura do oceano têm colocado em risco a sobrevivência dos ecossistemas formados por esses animais, um dos mais importantes para a biodiversidade marinha. Cientistas estimam que metade dos recifes de coral do planeta já morreram e o prognóstico para o restante não é dos mais otimistas. Se nada for feito para conter o aquecimento global, mais de 90% deles poderão estar em crítico risco de extinção até 2050, de acordo com um relatório da World Resources Institute (WRI).
“A cada ano, a mortalidade nos recifes de coral fica mais intensa. A ideia do projeto é trabalhar propostas para contra-atacar essa destruição e criar ferramentas que garantam a perenidade das espécies diante de um cenário em que o oceano está cada vez mais quente”, diz o coordenador técnico do projeto, Leandro Cesar de Godoy. Especializado em biotecnologias aplicadas à reprodução de organismos aquáticos, ele é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos poucos cientistas no mundo que estudam a criogenia (conservação da vida em baixas temperaturas) com foco na conservação dos corais.
A pesquisa se divide em duas partes: o congelamento de gametas – que são as células sexuais dos corais (espermatozoides e óvulos) – e a fecundação artificial em laboratório. O objetivo é conhecer detalhes dessas células e desenvolver protocolos de congelamento, descongelamento e reprodução específicos para cada espécie de coral. Inicialmente, os estudos estão sendo feitos com a Mussismilia harttii, uma espécie de coral que existe somente no Brasil.
“Temos no país cerca de 40 espécies de corais de águas rasas. No entanto, os corais pétreos, que são aqueles que formam esqueleto de carbonato de cálcio, são apenas 17. Dentre esses, há quatro espécies de corais-cérebro pertencentes ao gênero Mussismilia que são os principais construtores dos recifes da costa brasileira. A espécie M. harttii foi escolhida também porque já se encontra na lista de espécies ameaçadas de extinção”, explica Godoy.
A técnica desenvolvida no projeto é aliada à proteção da biodiversidade. “A preservação do material genético das espécies, sejam de corais ou não, e a formação de um banco de gametas, é uma das grandes contribuições que a ciência pode dar à natureza. Conforme percebemos que mais espécies se aproximam da extinção, com certeza isso vai criar uma maior demanda para essa técnica, que tende a se popularizar cada vez mais”, prevê a coordenadora de Ciência e Conservação da Fundação Grupo Boticário, Marion Silva.
Coleta de gametas
A Mussismilia harttii é uma espécie hermafrodita – ou seja, o mesmo indivíduo produz os óvulos e os espermatozoides –, com pico reprodutivo entre os meses de setembro e novembro. É nessa janela que os pesquisadores vão a campo, no litoral sul da Bahia, e coletam exemplares do animal. Estes são levados para viveiros da Base de Pesquisa do Coral Vivo, onde são mantidos nas mesmas condições do mar até que deem início ao processo de desova.
A reprodução dos animais está associada à fase da Lua Nova. Dessa forma, os pesquisadores conseguem estimar, com certa precisão, quando será feita a liberação dos gametas. Eles são lançados pelos corais dentro de invólucro (como uma cápsula) de cerca de 1,5 centímetro de diâmetro. Cada um desses “pacotinhos”, como chama Godoy, contém bilhões de espermatozoides e centenas de óvulos.
Após a coleta dos gametas, as colônias de corais são devolvidas ao recife, nos mesmos locais de onde foram retiradas. “A pandemia atrapalhou muito, pois todas as atividades em laboratório foram paralisadas. Essa é uma espécie que se reproduz num período específico do ano. Não ir a campo, portanto, significa quase um ano sem trabalho”, conta o pesquisador.
Diferentemente dos espermatozoides humanos, que são móveis no trato reprodutivo, na maioria dos organismos aquáticos eles só conseguem se movimentar quando entram em contato com a água. No entanto, uma vez lançados no mar, sua sobrevivência depende de acharem um óvulo da mesma espécie para realizar a fecundação – e essa é uma corrida contra o relógio.
De forma geral, espermatozoides de peixes marinhos conseguem viver de 15 a 20 minutos após entrarem em contato com a água. Algumas poucas espécies resistem por uma hora. Porém, os pesquisadores descobriram que os gametas masculinos dos corais podem sobreviver até 22 horas, algo sem precedentes. “É uma descoberta muito surpreendente e que mostra como a evolução foi imprimindo características muito específicas nos corais do Brasil. E estamos descobrindo características que são únicas aos gametas desses corais”, destaca o pesquisador, observando ainda que, no caso da Mussismilia harttii, esse tempo é de 16 horas.
Congelamento
Assim que são colhidos pelos pesquisadores, os gametas são congelados em nitrogênio líquido, a -196°C, e levados para a UFRGS, em Porto Alegre. É lá que Godoy e sua equipe começam a desenvolver os protocolos de descongelamento dos gametas, numa dinâmica similar à montagem de um quebra-cabeça. De cada um daqueles pacotinhos com bilhões de espermatozoides, cerca de 30% sobrevivem até essa etapa.