A ENERGIA QUE VEM DOS PORCOS: A REVOLUÇÃO DO ‘PRÉ-SAL CAIPIRA’
Antigo problema ambiental, dejetos de suínos viram matéria-prima para a produção de biogás e passam a ser fonte de renda para produtores do Paraná.
O que poderia levar um empresário há 40 anos no ramo da indústria a começar a criar porcos? “Só o que me interessa é a merda deles”, responde, rindo, Romário Schaefer, dono da cerâmica Stein, no Paraná.
Os dejetos dos suínos de sua propriedade no município de Entre Rios do Oeste (PR), a 133 quilômetros de Foz do Iguaçu, são matéria-prima para a produção de biogás. O combustível abastece um gerador que ajudou a reduzir a conta de luz da empresa pela metade.
Antes um problema ambiental, os resíduos da produção agropecuária passaram a ser fonte de renda para produtores do oeste do Paraná e, entre os mais entusiasmados, já é chamado de “pré-sal caipira”.
O modelo de negócios se tornou viável por meio da geração distribuída (GD), na qual o consumidor passa a gerar sua própria energia. A modalidade é mais conhecida pelos painéis solares, e a possibilidade de revisão das regras do sistema gerou tanta polêmica que até o presidente Jair Bolsonaro se envolveu no tema, pregando que o governo é contra “taxar o sol”. Mas a GD vai muito além, e inclui a energia gerada por eólicas, bagaço de cana-de-açúcar, aterros sanitários e, também, pelo esterco de animais.
Quem viaja pelo oeste do Paraná a turismo normalmente se limita a visitar as famosas Cataratas do Iguaçu. Aqueles que ficam mais dias podem passar também pelo Paraguai, para compras, e pela usina de Itaipu, segunda maior hidrelétrica do mundo. Mas no caminho desses destinos, o turista logo vai perceber que o que movimenta a região mesmo é o agronegócio.
O Paraná é o maior produtor de suínos do País e em aves perde apenas para Santa Catarina. E foi há 12 anos, ao longo das vistorias no reservatório de Itaipu, de 1.350 quilômetros quadrados, que técnicos perceberam o acúmulo de proteína animal, proveniente dos dejetos da produção agropecuária da região.
Somente o oeste do Estado concentra 4,2 milhões de suínos, 105 milhões de aves e 1,3 milhão de bovinos. Para se ter uma ideia, a estimativa é que, por ano, eles gerem resíduos equivalentes à água que desce nas Cataratas do Iguaçu por cinco minutos.
Estender a vida útil da usina de Itaipu ao máximo – hoje estimada em 182 anos – passa por ações que evitem o assoreamento de seu reservatório. Para isso, era vital encontrar uma forma sustentável de lidar com esses resíduos, que eram lançados no lago. Em função dessa necessidade, Itaipu, por meio do Parque Tecnológico da hidrelétrica, firmou uma parceria com o Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás).
As análises do CIBiogás mostraram que uma propriedade com 800 suínos pode gerar luz suficiente para abastecer 23 residências. Para isso, é preciso tratar os dejetos e separar o biogás. Explicam os especialistas: é um composto gasoso resultante da degradação anaeróbia de matéria orgânica por microorganismos. O processo gera também digestato, um fertilizante natural rico em nitrogênio, fósforo e potássio.
De acordo com o diretor-presidente do CBiogás, Rafael González, a agroindústria da Região Sul do País tem potencial para produzir 3 bilhões de metros cúbicos (Nm³) de biogás por ano, o suficiente para abastecer 2,5 milhões de casas populares.
Para gerar o combustível, é preciso instalar um biodigestor, estrutura que permite o tratamento dos dejetos. Com um investimento inicial relativamente elevado, de R$ 75 mil a R$ 100 mil, o negócio se tornou viável por meio do enquadramento como geração distribuída – que possui subsídios, pagos por meio da conta de luz dos demais consumidores. Os produtores garantem que o retorno se dá em três anos.
Prefeitura transformou problema ambiental em geração de energia
Entre Rios do Oeste
Para granjas de pequeno porte, a geração de energia a partir de biogás nem sempre é viável. Mas, dependendo do modelo de negócios, a produção do insumo pode compensar o investimento. Por meio de uma solução coletiva, a prefeitura de Entre Rios do Oeste conseguiu colocar de pé um projeto que gerou economia de energia e resolveu um passivo ambiental.
Com uma população de 4,6 mil habitantes e de 255 mil suínos, o município tinha alta carga poluidora. Para lidar com o problema, a cidade construiu uma rede coletora de 22 quilômetros para recolher o biogás gerado por 18 propriedades – cada uma pagou seu próprio biodigestor. Os cerca de 40 mil porcos produzem 4,7 mil metros cúbicos de biogás por dia, que são transportados até uma minicentral termelétrica.
A geração de energia da usina abate a conta de luz de 62 edifícios públicos. Em contrapartida, os produtores são remunerados com R$ 0,28 por metro cúbico de biogás produzido. Cada um recebe entre R$ 800 e R$ 5 mil, suficiente para pagar com folga sua conta de luz.
Mesmo com o pagamento, a prefeitura economiza entre 5% e 15% em relação ao que gastava em energia antes do projeto, afirma o secretário municipal de Saneamento Básico, Energias Renováveis e Iluminação Pública, Carlos Eduardo Levandowski.
Um dos produtores que integram a rede é Claudinei Jardel Stein, proprietário da granja Santo Expedito. Ele cria 7,4 mil suínos e recebe, em média, R$ 1.500 do município. Sua conta de luz mensal varia entre R$ 1.200 e R$ 1.400. O biodigestor mudou a qualidade de vida na propriedade. “O mau cheiro e as moscas diminuíram muito”, disse.
Ademir Escher, também dono de uma granja que faz parte do projeto, concorda. Ele vive na propriedade com sua família e conta que, depois do biodigestor, a filha parou de reclamar do mau cheiro que impregnava em suas roupas. Ele recebe mensalmente entre R$ 1.000 e R$ 1.200 da Prefeitura pelo biogás gerado por 1,2 mil suínos.
O projeto, estruturado pela CIBiogás, custou R$ 17,5 milhões, obtidos com verba de pesquisa e desenvolvimento (P&D), em uma parceria entre Itaipu, Parque Tecnológico Itaipu e a distribuidora Copel.
Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o País tem hoje 182 empreendimentos que geram energia a partir de biogás. No ano passado, a potência instalada dos projetos somou 36 MW, ante 110 kW em 2014.
Engenheiro ambiental da CIBiogás, Luís Thiago Lúcio, afirma que cada projeto deve levar em conta a estrutura e espaço físico da granja e as condições da rede da concessionária de distribuição. “Nem todo projeto individualmente é competitivo, mas coletivamente ele pode dar certo”, diz, em referência ao projeto da prefeitura.
Com esterco de porcos, empresário reduz em R$ 30 mil por mês a conta de luz
Entre Rios do Oeste
Dono de uma cerâmica, o empresário Romário Schaefer não tinha experiência alguma no agronegócio. Foi a possibilidade economizar energia que motivou o industrial a investir na criação de suínos. “Não entendia nada de porcos. Só o que me interessava era a merda deles”, afirmou.
A família tem a cerâmica Stein há 40 anos e produz 40 mil tijolos por dia, com faturamento mensal de R$ 500 mil. Em 2012, Schaefer comprou um forno contínuo para a cerâmica, que funciona 24 horas por dia e não pode ser desligado. O gasto com eletricidade aumentou consideravelmente. “Foi quando achamos a alternativa do biogás”, disse.
Em 2013, ele investiu R$ 300 mil na construção da granja e na compra de um biodigestor e de um gerador próprio. Começou com 3 mil suínos. Todo o biogás gerado – 446 metros cúbicos por dia – rende 28 megawatts-hora por mês, energia que é integralmente utilizada na indústria.
“Religiosamente”, como ele descreve, o gerador é ligado entre as 18h e 21h, horário de ponta, quando a distribuidora local pode cobrar cinco vezes mais pela energia que vende.
Mais recentemente, o industrial automatizou processos da cerâmica e decidiu dobrar o plantel para 7 mil suínos. Agora, o biogás será também queimado diretamente em seus próprios fornos. “Investi na granja para resolver um problema de energia. Foi fantástico. Reduzi meu custo de produção, ao diminuir a conta de luz, e, ao mesmo tempo, estou criando porcos, o que gera uma receita que paga meu investimento”, afirmou.
Schaefer relata que o retorno do investimento se deu em três anos. Ele conseguiu reduzir sua conta de luz pela metade – de R$ 60 mil para cerca de R$ 30 mil mensais. O industrial doa o biofertilizante gerado para os vizinhos.
O biogás também aumentou a segurança energética da indústria. Localizada na fronteira com o Paraguai, Entre Rios do Oeste está próxima do fim da rede da Copel e, por isso, costuma ser afetada por desligamentos em tempestades. “Nesses dias, eu faço tudo no biogás. Não falha, não pisca, não oscila”, disse.
Granja pioneira em geração de biogás no Brasil vai virar fornecedora de energia para município
Sócio proprietário da granja São Pedro, Pedro Colombari foi o primeiro produtor a investir em geração distribuída no País, em 2008. Na propriedade, localizada em São Miguel do Iguaçu, ele cria 5 mil suínos e 400 bovinos, e também planta milho e soja. Com o biogás gerado por seu plantel, economiza entre R$ 5 mil e R$ 7 mil mensais em energia elétrica na granja e em outros imóveis e propriedades da família.
A propriedade foi pioneira de um projeto-piloto em parceria com Itaipu. Recebeu um motogerador a biogás para produção de energia e um biodigestor. A granja gera 770 metros cúbicos de biogás por dia e produz 32 megawatts-hora por mês. A energia gerada na granja custa um terço do valor cobrado pela distribuidora.
O biofertilizante é usado no plantio de pastagens. Com o aumento da segurança energética, ele também comprou mais máquinas elétricas para a propriedade – uma bomba de irrigação e ventiladores para a granja.
Embora o investimento necessário para gerar energia a partir de biogás seja mais alto para projetos individuais – entre R$ 300 mil a R$ 500 mil –, Colombari não vê a suinocultura sem biogás.
Ele destaca ainda a segurança ambiental que o biodigestor proporciona para as propriedades. “Num período de chuvas fortes, se você tem uma lagoa aberta, ela pode transbordar. É uma segurança também para os nossos rios”, afirma.
Agora, ele participa de um novo projeto-piloto para criação de uma rede própria (microgrid) com Itaipu, Parque Tecnológico de Itaipu, CIBiogás e a distribuidora Copel. A ideia é que a granja forneça energia para unidades próximas em momentos de queda de fornecimento.
A energia é insumo essencial para produtores de aves e suínos, já que os animais podem morrer se as granjas ficam mais de uma hora sem eletricidade.
Potencial de produção de biogás corresponde ao dobro do volume de gás que Brasil importa da Bolívia
O potencial de biogás do Brasil País corresponde a até duas vezes o volume médio de gás natural importado da Bolívia em 2018. O dado integra o Plano Nacional de Energia Elétrica (PDE) 2029, divulgado no último dia 11 de fevereiro. A ideia é utilizar o combustível para substituir o diesel, além de misturar o insumo ao gás natural fóssil na malha de gasodutos.
O cenário de referência do governo estima investimentos de R$ 1,575 bilhão até 2029 em termelétricas a biomassa, com 30 megawatts (MW) contratados por ano entre 2023 e 2029, totalizando 210 MW. O maior potencial, segundo o documento, está nos resíduos do setor sucroenergético, com a biodigestão do bagaço da cana-de-açúcar, resíduos animais e urbanos.
“Temos que entender a matriz energética brasileira dentro das características regionais que temos. Não adianta fazer biogás no Nordeste, onde não temos pecuária, assim como colocar uma eólica onde não tem vento. Nosso plano contempla essas características”, afirmou o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque.
Se no Brasil essa tecnologia está começando a aumentar sua presença na matriz energética, na Europa, já são 17,5 mil plantas que produzem energia a partir do biogás.
A Alemanha lidera o ranking, com quase 10 mil empreendimentos. O avanço se deu em meio aos conflitos entre Rússia e Ucrânia pelo gás, a partir de 2009, que cortaram o fornecimento para o país – até então, 40% do gás que abastecia os alemães chegava por esse caminho.
Outra possibilidade de uso do biogás é na indústria de transportes. O tratamento e refino do biogás gera o biometano, combustível que funciona como substituto do gás natural e pode, inclusive, ser injetado em gasodutos.
O potencial de biometano disponível no País, considerando agropecuária, indústria sucroenergética, resíduos e efluentes seria suficiente para substituir 70% do volume de diesel consumido no Brasil.
Em Itaipu, a frota de veículos já é abastecida com esse combustível. Na unidade de tratamento da empresa, os resíduos produzem 200 metros cúbicos de biometano por dia.
O País tem hoje oito empreendimentos que produzem biometano – dois são aterros sanitários. Em média, uma tonelada de resíduos orgânicos gera 75 metros cúbicos de biogás, que, tratados, se tornam 38 metros cúbicos de biometano.
Mesmo depois de fechados por 16 anos, os aterros sanitários continuam gerando biometanos, afirma o diretor de Desenvolvimento Tecnológico do CBiogás, Felipe Marques.
A indústria já acredita no potencial do combustível. A Scania deve começar a entregar os primeiros caminhões movidos a GNV, GNL e biometano em abril. Os primeiros tratores movidos a biometano da New Holland também chegam ao mercado neste ano.