Como revitalizar as margens de um rio mudou a capital da Espanha

Quem passa pelas margens do Rio Manzanares, em Madri, de bicicleta ou caminhando, e observa os mais de 253 mil metros quadrados de áreas livres pode ter dificuldade em imaginar a região dominada por um intenso tráfego de carros e caminhões.

A área que hoje abriga parques, pista de skate, campos de futebol, uma praia urbana e mais de 33 mil árvores era, até 2007, parte da M-30 — espécie de rodoanel da capital espanhola. Por ali rodavam, em média, 200 mil carros por dia e o rio não passava de um detalhe na paisagem.

A intensidade de tráfego era comparável às marginais Tietê e Pinheiros, em São Paulo, que recebem, respectivamente, 350 mil e 180 mil carros por dia. Ainda assim, o congestionamento era um mal cotidiano para os madrilenhos que margeavam o Manzanares em seus carros.

Em 2005, Madri optou por priorizar outras formas de ocupar e transitar naquele espaço. Com o projeto Madrid Río, coordenado pelo arquiteto espanhol Ginés Garrido, um trecho de seis quilômetros de avenida foi enterrado em túneis. A superfície passou a abrigar 30 quilômetros de ciclovias além de dezenas de outras áreas de lazer.

O projeto, que custou 5,1 bilhões de euros, venceu vários prêmios internacionais — entre eles o prestigiado 12º Veronica Rudge Green Prize, um prêmio de design urbano da Universidade de Harvard.

Garrido vem a São Paulo para falar no seminário “A Cidade e a Água”, organizado pelo Arq.Futuro no Itaú Cultural na segunda-feira (25). Antes de viajar, o arquiteto falou com o Nexo sobre o processo de construção e aceitação pública da obra, a importância das margens dos rios para uma cidade democrática e os impactos futuros que seu projeto potencialmente trouxe para a capital da Espanha.

Por que historicamente as margens dos rios, em muitas cidades do mundo, acabaram como avenidas?

GINÉS GARRIDO: Eu acredito que há quatro razões fundamentais. A primeira é que, até que os rios fossem canalizados e o fluxo das inundações controlado, essas áreas eram em muitos casos inundáveis, e portanto as cidades não chegavam até as bordas dos rios porque eram lugares perigosos. Elas só chegavam às bordas dos rios quando não eram inundáveis ou estavam bem protegidas das inundações. Portanto, essas áreas estavam desocupadas até há pouco tempo, quando se conseguiu controlar o volume para evitar as inundações.

A segunda razão eu acredito que tem a ver, também, com o fato de que os rios foram, com muita frequência, o veículo utilizado pelas cidades para evacuar seus detritos, e portanto eram lugares insalubres. A terceira é porque normalmente as margens são um lugar relativamente plano, então é fácil de ter uma linha de trem ou uma estrada. E há também uma quarta razão, no caso de rios maiores, de que foram meios de comunicação entre as indústrias e as redes ferroviárias que se instalavam nas bordas fluviais para carregar e descarregar mercadorias. E isso aconteceu em todo o mundo.

Eu acho que Madri é uma cidade convencional [com relação ao processo como de transformação das margens do rio em estradas]. A inflação de ruas nas cidades, em geral, é fruto do petróleo barato. O petróleo foi muito barato até o ano de 1973, quando veio a crise. Até então, parecia que qualquer coisa poderia ser feita com gasolina, e portanto a construção das cidades estava muito baseada na sua mobilidade e no transporte baseado no consumo de gasolina. Investiu-se em ruas para carros porque o petróleo era muito barato.

O paradigma da mobilidade e do movimento fazia pensar que as cidades pudessem estar segregadas em atividades, como se estivessem dentro de caixas — as moradias de um lado, a mobilidade de outro, a indústria de outro e os parques de outro. Esse foi o paradigma que funcionou até os anos 1970.

No caso de Madri, mesmo o rio pequeno alagava a cidade. A primeira canalização aconteceu nos anos 1920, depois foi feita outra canalização nos anos 1940 e não foi suficiente. E finalmente, como também aconteceu no Brasil, em São Paulo, foi feita uma represa a uns 20 quilômetros ao norte da cidade que definitivamente regulou o fluxo.

Por que os rios urbanos são importantes para as cidades?

GINÉS GARRIDO: Por muitas razões. É um tema que está muito em voga porque poucos rios urbanos no mundo estão bem cuidados e são lugares atrativos. Mas eu diria que, em primeiro lugar, os rios estabelecem o vínculo que as cidades têm com sua geografia e topografia. Por menor que seja o rio. O Manzanales, de Madri, é muito pequeno. Mas mesmo assim a topografia é algo muito importante porque Madri é uma cidade com colinas e o rio está no ponto mais baixo. Então estabelece um vínculo com a geografia na qual a cidade está assentada e, portanto, há uma espécie de recordação da origem da cidade, de vínculo com as paisagens que estão ao redor, e acho que isso é importantíssimo.

Há uma razão ecológica fundamental. Os rios são os veículos para a potência ecológica das paisagens. São como vetores que cruzam a cidade e não impedem os fluxos de insetos, de peixes, de pássaros, de anfíbios e inclusive de mamíferos, quando os rios são grandes.

Há também as razões climáticas. Os rios geralmente estão associados a ventos frescos ou mais frios. E isso é muito importante porque, nas cidades, as bolsas ou ilhas de calor são cada vez maiores. Essas correntes de ar refrescam, pela noite, as cidades que se esquentaram pelo dia com as radiações solares.

E por fim há uma razão social. O rio é, de alguma maneira, de todo mundo. E essas áreas que acabam vagas nas margens dos rios — seja por indústrias obsoletas, ou por portos que foram transportados para outros lugares, ou por avenidas que podem ser desmontadas — são lugares onde os cidadãos são todos iguais.

Os espaços públicos são cada dia mais uma demanda das cidades e são os lugares onde as democracias, digamos, se medem. Um país é tanto mais democrático na medida em que os seus espaços públicos são aproveitados e usados por uma maior diversidade de pessoas. São os lugares onde todas as pessoas são um pouco iguais. Claro que os extremos são difíceis — os mais pobres raramente desfrutam dos espaços públicos e os mais ricos a mesma coisa — mas conforme os países se fazem mais democráticos, também as classes médias crescem e portanto há uma razão social de grande importância.

Talvez existam mais motivos, mas esses são importantes.

Como as margens do Rio Manzanares eram percebidas pela população de Madri antes da construção do parque?

GINÉS GARRIDO: Elas não existiam. As margens do rio estavam ocupadas pelas avenidas e ninguém as percebia. Digamos que, visualmente, o rio existia porque era possível vê-lo de dentro do carro, mas era um espaço obscuro no sentido de que não existia enquanto espaço. Uma pessoa não podia chegar perto das margens do rio porque, logicamente, havia as avenidas dos dois lados mas também as redes de metrô, trem, as instalações urbanas, canalizações, redes de alta tensão. Todo o fluxo e movimento de energia, de dados, de pessoas e de carros estava situado nas margens do rio, e portanto as pessoas não o percebiam. Tampouco existia um sentimento negativo com ele, é que realmente era impossível chegar no rio com uma avenida de quatro, cinco pistas de cada lado.

Em que modelo de parque se inspiraram para o projeto Madrid Río?

GINÉS GARRIDO: Claro que quando nós ganhamos o concurso em 2005 fizemos muitas visitas a outros lugares, outros parques e outros espaços diferentes no mundo. Também fizemos muitas visitas para entender os problemas técnicos que encontraríamos nos próximos anos. O parque da superfície tem umas 150 áreas, e delas, 60 ou 70 estão construídas sobre as coberturas de concreto dos túneis e das instalações. Então, como fazer isso era uma pergunta que não sabíamos como responder em princípio.

Contudo, não é fácil encontrar referências formais porque Madri é uma cidade bastante seca. Não é uma cidade verde, é uma cidade marrom. E não digo marrom como algo pejorativo, mas não é verde para além de alguns meses no inverno. No resto do ano, é uma cidade marrom, ou amarela, ou ocre, ou torrada se preferir. E portanto a maior parte das referências que encontramos pertencem a climas que são muito mais chuvosos e que, portanto, utilizaram outras respostas para responder a seus problemas.

Por outro lado, o verde e a umidade é algo muito desejado em um lugar tão seco quanto Madri. Então se produz uma contradição. Chove pouco e a paisagem é ocre, mas mesmo assim todos queremos ter uma paisagem fresca e verde. Não é fácil encontrar referências para resolver essa contradição. As referências vinham do Brasil, ou do norte da Europa, ou do norte da América, em sua maior parte, porque é onde foram construídos a maior parte dos parques ao longo do século 20.

Então não usamos nenhuma referência concreta. Estrategicamente, sim. Especialmente nos grandes paisagistas que entenderam que era necessário ligar paisagens dos exteriores das cidades com o seu interior. Isso no sentido estratégico. Mas no sentido concreto não, porque não há muitas referências com um clima como o nosso.

Como foi possível fazer uma obra tão grande com a cidade em funcionamento?

GINÉS GARRIDO: Primeiro porque eu acho que foi feita muito depressa. É claro que a cidade sofreu muito com a obra. É preciso levar em conta, também, que toda a obra dos túneis foi feita abaixo das avenidas, e o fluxo delas nunca foi [completamente] cortado. É impossível fazer isso. Passavam por lá 200 mil carros por dia. Mas claro que gerou grandes problemas aos cidadãos.

Eu acho que o grande êxito da operação foi fundamentalmente que as grandes obras de infraestrutura foram feitas muito rapidamente. A cidade esteve aberta com suas grandes obras por dois anos e meio, três. E toda a operação que se fez na superfície durou menos de quatro anos. O exemplo mais parecido para se comparar é o Big Dig, em Boston, uma obra que durou quase 17 anos. E em Madri se fez em cinco ou seis anos. O que tem algumas vantagens e desvantagens. Mas se durasse 16 anos, Madri não suportaria. Os cidadãos tiveram muita paciência, mas foi uma obra muito rápida.

Qual a importância do apoio popular e da opinião pública para que um projeto como esse saia do papel?

GINÉS GARRIDO: Bom, essa obra teve muita gente contra. A verdade é que o governo não teve um claro apoio da população no início. Eu acho que principalmente porque [a obra] foi feita muito depressa, e a prefeitura não foi capaz de explicar aos cidadãos o que ia acontecer, por que aquilo estava sendo feito. Isso leva mais tempo. Como consequência, os cidadãos não entendiam o por quê de obras que se viam naquele momento como muito caras e que empregavam muitos esforços. Se pensava que estavam priorizando o transporte privado e portanto as pessoas que têm mais recursos, e portanto a população não aceitou muito facilmente. Digamos que a obra foi feita contra uma parte importante da população que não estava a favor.

Pouco a pouco, conforme fomos trabalhando, os cidadãos foram entendendo o projeto. Quando fazíamos as obras dos túneis, ninguém podia imaginar o que ia acontecer com a superfície, e ninguém lhes explicou bem. Quando fomos terminando a obra, as pessoas começaram a entender a magnitude e a repercussão que aquilo poderia ter para eles, e por isso foram aceitando o projeto paulatinamente de uma maneira muito franca. No fim, teve muito êxito. Está sempre cheio de pessoas, é um lugar que de noite ou de dia, no inverno ou no verão, tem muito êxito.

Então, por um lado, às vezes as coisas podem ser feitas contra a opinião pública — se feitas bem depressa, obviamente. E é muito importante capturar o sonho, digamos, dos cidadãos, para que o aceitem rapidamente. E foi o que aconteceu nesse caso. Os cidadãos se esqueceram das avenidas, se esqueceram completamente da obra, e agora ninguém põe em dúvida de que foi um investimento rentável e razoável socialmente. Mas porque os cidadãos se apropriaram do espaço muito depressa e com muita energia.

Com mais de seis anos do fim do projeto, qual é o uso e a percepção da população das margens do rio?

GINÉS GARRIDO: O lugar se converteu em uma referência para a cidade. E o que está acontecendo é que outras partes da cidade… ou seja, [o projeto Madrid Río] atuou como uma espécie de vírus que entrou na cidade e a está transformando completamente em outros lugares. É como um patrão que estabeleceu um modo de fazer as coisas que agora ninguém diz que não pode ser feito. Portanto, não apenas se está desfrutando desse espaço, como também ele gerou uma ambição por parte da cidade e de seus cidadãos para que outros parques que estão ligados a esse vão, pouco a pouco, ocupando outros troncos da cidade.

O mais importante, eu acho, é que em um horizonte de 20 anos, pouco a pouco a cidade vai ocupar outros espaços que estão vagos em uma outra maneira de entender o modo que se constroem os espaços públicos, de uma maneira muito relacionada com o projeto Madrid Río. É como uma doença, no sentido positivo, que não tem volta. Nesse sentido foi muito relevante. Muitas pessoas trabalharam neste projeto, incluindo servidores da cidade, e todos nós tivemos a oportunidade de aprender muito com ele.

Qual o impacto da construção do parque no trânsito de Madri?

GINÉS GARRIDO: Digamos que no sentido do tráfego também há vários horizontes. Por um lado, eu acredito que em um tempo relativamente curto o primeiro anel de avenidas [da obra] será uma espécie de limite dentro do qual os carros vão deixar de entrar. A avenida que dá a volta dentro da cidade será o limite que será estabelecido com a entrada dos carros. Por outro lado, também acho que em breve será necessário pagar para poder trafegar por essa avenida, então de alguma maneira o custo de uso dessas avenidas será transferido aos carros que as usam — com exceção dos taxistas ou das pessoas que precisam usá-las por trabalho.

Foram feitas muitas obras para melhorar o tráfego, mas é preciso ver um horizonte maior no qual mais coisas podem ser feitas para transformar a cidade em um espaço fundamentalmente pedestre, para o transporte público e para as bicicletas. E digamos que esse anel permite que isso aconteça. Está traçado um limite muito claro dos espaços feitos para os carros e dos espaços que podem funcionar com muita eficácia sem carros. E claro, em um horizonte ainda maior, o qual não acho que dure tanto tempo, estão os carros automáticos compartilhados sem condutor, que farão com que dentro de 15, 20 anos, muito pouca gente tenha carro, porque será muito mais fácil recorrer a um carro compartilhado que se move pela cidade. E eu acho que o anel permite que isso aconteça mais facilmente.

NEXO