Como um novo modelo de pesca do pirarucu salvou a espécie e mudou a vida de povos indígenas
No território Paumari, no Amazonas, o manejo sustentável do maior peixe de água doce do mundo completa dez anos e passou a ser a principal fonte de renda.
LÁBREA (Amazonas) – Uma década atrás, havia tão pouco pirarucu nas terras indígenas Paumari, no Amazonas, que a pesca anual mal durava três dias.
Enéias, jovem de 25 anos que nasceu em uma das sete aldeias que integram essa comunidade indígena — conhecida como povo das águas —, lembra bem: pouco mais de 200 pirarucus nadavam pelo Rio Tapauá a cada ano, correndo risco de extinção, enquanto hoje ele e seus parentes conseguem pescar cerca de cem, em apenas um dia.
Ao mesmo tempo em que pescam, conseguem a proeza de aumentar o volume desse que é o maior peixe de escamas de água doce do mundo.
Pela contagem dos Paumari, que é certificada pelo Ibama, a população de pirarucu chega hoje a 10 mil somente na área em que vivem. Em toda a Região Amazônica, alcança mais de 400 mil, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão que está por trás da execução do manejo.
— Já chegamos a pescar um de 208 quilos e 3,5 metros de comprimento — orgulha-se Enéias.
Em 2019, a história do manejo sustentável do pirarucu, que permitiu o aumento da população e do tamanho do gigante amazônico — ficando mais gigante ainda — completa dez anos entre os Paumari, e 20 anos na Amazônia como um todo.
— Ninguém acreditava que ia dar certo — lembra o pai de Enéias, Germano, referindo-se ao início da implantação. — Hoje, toda a produção é coletiva, nossa comunidade está unida. Acho que, se conseguirmos continuar esse trabalho, meus netos não vão sofrer o que sofremos.
Germano se refere à renda que agora conseguem obter com a venda do pirarucu sustentável, que, como consequência, dá aos Paumari mais autonomia e infraestrutura para garantir a qualidade do negócio e para fazer a vigilância de todo o seu território — desde gastos com gasolina para cobrir a área até a compra de instrumentos mais modernos.
Empoderamento das mulheres
Hoje, Germano é coordenador de uma associação criada pelos Paumari justamente para lidar de forma burocrática e formal com a pesca e a venda do pescado. A Associação Indígena do Povo das Águas (Aipa) foi criada no primeiro semestre deste ano, e não apenas uniu mais a comunidade, como também ajudou a empoderar as mulheres.
Elas passaram a participar de todas as etapas da pesca, desde a contagem da quantidade de peixe existente no rio até a conservação do pescado no gelo. Não à toa, a presidente da Aipa é uma mulher, Deusilene Paumari, de 35 anos.
— Eu trabalhava na cozinha e achava que trabalho de mulher era isso. Mas depois percebi que poderia ter uma função importante principalmente no encorajamento das mais jovens, para que se envolvam nos trabalhos coletivos do nosso povo e que não tenham medo de lutar por direitos. Nem precisei pedir autorização ao meu marido para ser a presidente da Aipa — conta ela.
Esse povo indígena não é o único a fazer o manejo sustentável do pirarucu. Em toda a Amazônia, o trabalho é realizado em mais de 30 áreas protegidas e de acordo de pesca. A primeira foi a Reserva Mamirauá, no Rio Solimões, em 1999. Em todas essas áreas, o crescimento acumulado do estoque de pirarucu foi de 99% entre 2012 e 2016, segundo o ICMBio.
A iniciativa é feita em parceria com o Serviço Florestal dos Estados Unidos (UFSF, na sigla em inglês), tem recursos da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA (Usaid, em inglês) e apoio da Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ, na sigla em alemão).
Medo das ações do governo Bolsonaro
Maria Zilá Paumari, uma das moradoras da aldeia Patauá, diz que vê com receio o modo como o presidente Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, abordam o desenvolvimento da região.
Para ela, questionar dados científicos de desmatamento e ameaçar diminuir territórios indígenas atrapalham o trabalho que eles desenvolvem e o seu modo de vida.
— A gente precisa ter certeza de que ninguém vai tomar nosso território para a gente ter tranquilidade de continuar trabalhando. Nos últimos tempos, a gente já foi ameaçado. Os brancos passam aqui de barco e dizem que a gente é “caduco”, que a gente tem que sair da terra — conta ela.
O especialista em projetos agroindustriais André Machado, assessor técnico da GIZ, destaca que o manejo do pirarucu é uma aposta da Alemanha para a proteção da Floresta Amazônica.
A instituição não é financiadora do projeto de manejo. Embora ela invista alguns recursos, a principal função é fornecer consultoria e estudos técnicos. Apesar do recente anúncio de que o governo alemão irá congelar R$ 156 milhões em investimentos em preservação ambiental no Brasil, o manejo do pirarucu não será um dos projetos afetados.
— A cooperação alemã no Brasil já está aqui há 30 anos e faz hoje um trabalho com o governo brasileiro em duas grandes áreas: energias renováveis e preservação de florestas. Dentro do programa de florestas, há o projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável. E é nesse projeto que se insere o manejo do pirarucu, e damos nosso apoio porque queremos participar de estratégias inovadoras de comercialização desse produto. Esse manejo gera uma série de aspectos positivos: renda, ocupação produtiva do território, valorização da cultura local, proteção da floresta — diz ele.
Como funciona o manejo
Manejar o pirarucu de forma sustentável significa cumprir uma série de regras. Entre elas, só pescar entre outubro e novembro — período do verão amazônico, quando o nível da água está baixo —, fazer a pesca apenas em áreas protegidas e retirar no máximo 30% do total de peixes adultos.
Mas como saber quantos peixes existem na água? A pesca do pirarucu é a única que envolve uma metodologia científica de contagem, obtida a partir do conhecimento tradicional de povos indígenas.
Funciona assim: como esse peixe precisa também de oxigênio para sobreviver, ele sobe periodicamente à superfície para respirar e, nesse momento, pode ser contado. Isso, é claro, seguindo técnicas que os indígenas desenvolveram para não contar duas vezes o mesmo peixe.
— Essa contagem feita de modo tradicional se mostrou praticamente tão precisa quanto a que é feita pelo Ibama — afirma o biólogo e indigenista Felipe Rossoni, da Operação Amazônia Nativa (Opan). — Quando o Ibama confere, no geral dá uma diferença de dois, três peixes. É algo impressionante.
O método foi formalizado em estudo científico ainda nos anos 90 por um pesquisador chamado Leandro Castello, especialista em ecologia e conservação de recursos pesqueiros que hoje é professor da Virginia Tech, nos EUA.
— O expressivo aumento do número de pirarucus, ao contrário do que pode parecer, não trouxe desequilíbrio ambiental. O “boom” de peixes fez a população dessa espécie voltar ao que já foi um dia e, assim, de quebra, possibilitar venda em escala e geração de renda — destaca o biólogo da Opan.
Entre os Paumari, foi preciso ficar quatro anos, a partir de 2009, sem pescar nem sequer um pirarucu. Isso foi necessário porque o número de peixes estava tão baixo que qualquer tipo de manejo seria prejudicial para a espécie.
Em fins de 2017, eles conseguiram construir em seu território uma grande sala branca — que, no momento em que o peixe gigante é eviscerado, parece até sala de cirurgia — para receber o pescado, fazer a inspeção de qualidade, limpá-lo, e conservá-lo no gelo para aguardar a venda. O lugar é chamado de unidade de pré-beneficiamento, e com ela, a qualidade do pirarucu deu um salto, uma vez que se leva pouquíssimo tempo entre a morte do peixe e a sua conservação no gelo. Essa unidade também livrou os Paumari dos “atravessadores”, pessoas que passavam lá de barco oferecendo preço baixo demais pelo pescado. Agora, os indígenas não precisam vender de qualquer jeito, nem pelo preço que qualquer um oferecer. A unidade foi estreada na pesca do ano passado e será usada pela segunda vez no próximo outubro.
— A palavra “manejo” ainda não é autoexplicativa. Poucos sabem do que se trata — lamenta Ana Cláudia Torres, coordenadora do programa de manejo de pesca do Instituto Mamirauá. — Mas é um trabalho muito importante não apenas para proteger o pirarucu: como esse peixe é uma espécie “guarda-chuva, se ele está preservado acaba também aumentando a população de outras espécies, como peixes-boi e tartarugas.
Em 2015, foi criado o “Coletivo Pirarucu”, que reúne povos indígenas, ribeirinhos, associações de pescadores e outras organizações. Uma delas é a Associação de Produtores Rurais de Carauari (Asproc), da qual o amazonense Adevaldo Dias faz parte. Ele destaca os serviços ambientais que são prestados pelos indígenas envolvidos na pesca do gigante amazônico.
— Cerca de 60% do custo total do pirarucu são gastos não com a pesca em si, mas com a vigilância do território, para que não seja desmatado e para que o peixe não seja pescado de forma ilegal, por exemplo — afirma ele. — A sociedade brasileira não conhece a Amazônia. Com isso, existem alguns mitos, como o de que o indígena tem muita terra e produz pouco. A sociedade deveria agradecer aos indígenas pelo trabalho de conservação que eles prestam à Humanidade, porque é graças a esse trabalho que há chuva no Sudeste do país. Se não tivéssemos a floresta protegida por esses povos tradicionais, não teríamos os benefícios que temos em outras partes do país e do mundo. Os serviços ambientais que essas populações prestam à sociedade infelizmente não são compreendidos pela maioria das pessoas.
Novas estratégias para escoar produção
O manejo sustentável fez com que a população do peixe crescesse tanto que surgiu um novo — e inesperado — problema: como escoar todo esse pescado?
Pedro Constantino, do Serviço Florestal dos EUA, conta que já faz dois anos que o coletivo se debruça sobre essa questão. E, ao que parece, o gargalo da produção começou a se resolver este ano, quando as primeiras levas de pirarucu de manejo sustentável passaram a alcançar mercados fora da Região Amazônica.
Sob a chancela de um projeto gastronômico que envolve chefs cariocas, batizado de Gosto da Amazônia, o mercado prioritário tem sido o Rio de Janeiro, onde, até então, chegavam somente o pirarucu de cativeiro ou pescado ilegalmente.
Bruna De Vita, coordenadora geral de populações tradicionais do ICMBio, acredita que os resultados da iniciativa serão duradouros.
— Manejar é um pacto. É um pacto da comunidade entre seus integrantes, é um pacto da comunidade com os recursos com os quais ela vive e com entidades de fora. E o êxito para isso é a base comunitária estar muito bem organizada, que é o caso dos Paumari.
Ela diz que a parceria travada com o governo americano é desenvolvida não só com a cadeia de valor do pirarucu, mas com outras três: a da madeira — num manejo florestal comunitário —, do açaí e da castanha.
— A do pirarucu foi a que conseguiu avançar mais — afirma Bruna.
A repórter viajou a convite da Operação Amazônia Nativa (Opan) e do Projeto Cadeias de Valor Sustentáveis (USFS/ICMBio).