“A ação do homem está acabando com o próprio habitat”, diz Adriana Calcanhotto

Tema principal do seu mais recente disco, intitulado “Margem”, a cantora bateu um papo exclusivo com o site HT sobre a poluição de mares e oceanos e deu detalhes do processo criativo.

Era dia 1º de fevereiro, véspera da festa de Iemanjá, e Adriana Calcanhotto lançava o single Ogunté, que já dava algumas pistas de como seria novo álbum. No universo afro-brasileiro, o orixá é uma Iemanjá guerreira, guardiã dos mares do mundo. No clipe, a cantora evoca a imagem da entidade para mergulhar, com consciência social, nas águas que servem de trânsito para os refugiados e que também comportam todo o plástico jogado nos mares por descaso ambiental. A composição de autoria de Calcanhotto (Ogunté) nasceu em 2016, com bases sintetizadas, como canção declamada com prosódia similar a do rap, e chega ao disco na forma de trip hop à moda baiana. A faixa é parte do álbum Margem, que acaba de chegar às plataformas digitais, e encerra a uma trilogia de álbuns sobre o mar, iniciada há 20 anos, com ‘Marítimo‘, que foi lançado em 1998; depois ‘Maré‘, em 2008.

A relação da cantora e compositora vai muito além do simples gostar do mar. É mais profunda. “Tem várias camadas disso. Tem o mar físico, aquele barulho, uma coisa muito poderosa que sempre me impactou muito. E tem o mar literário, as citações, desde Odisseia, em que se cita os mistérios do mar, o mar como metáfora da condição humana. E, agora, também essa outra camada com que se lida o tempo todo, que é o que a gente está fazendo com o mar, o estado em que os oceanos se encontram. É uma ação do homem acabando com o próprio habitat. Isso é uma coisa chocante, não dá para não tocar nesse assunto fazendo um disco sobre o mar agora”, explica Adriana.

Fechando a trilogia iniciada em 1998 com “Marítimo” e que teve o seu segundo capítulo lançado em 2008 com “Maré”, Adriana Calcanhotto estreou o tão aguardado “Margem” no último dia 7. Com nove faixas, o projeto, que foi concebido 21 anos após o primeiro trabalho, mostra a evolução enquanto artista pelo qual a cantora passou, além de chamar a atenção da sociedade para a poluição dos mares e oceanos. “Desde a primeira parte dessa trilogia, muitas coisas mudaram. Infelizmente, há pessoas que ainda não acreditam que temos problemas em relação à poluição. É que a urgência desse capítulo final dentro da trilogia é muito forte. Antes, não era tão visível. Não é que não tinha poluição no mar. A gente não ficava vendo essas ilhas de plástico sólidas, gigantescas no oceano. Parece que as pessoas se deram conta de que elas estão comendo o plástico que elas jogam fora. A diferença que eu vejo é essa necessidade de tirar esse lixo do mar e conscientizar as próximas gerações desse problema”, afirmou.

Adriana contou ao site HT todos os detalhes envolvendo o processo criativo do álbum: “Ele nasceu no lançamento do Maré, que é o segundo álbum da trilogia Marine. Talvez por estar pensando no mar, fazendo o disco, dando entrevistas e falando sobre o assunto, veio esse nome: Margem. Mesmo tendo estabelecido a trilogia, eu não sabia se eu a completaria ou não. Mas quando veio o nome, ficou claro que em algum momento este disco sairia. Como eu não tinha expectativa e nem prazo, eu lancei o Maré e fiz a turnê primeiro. Deixei o disco em processo paralelo. Demandou muito tempo de maneira não contínua para que ele ficasse completo e em equilíbrio”.

Antes de “Margem”, o último trabalho de estúdio realizado pela artista foi ‘O micróbio do samba‘, em 2011. Nesses onze anos de diferença entre os dois volumes, Adriana revela que se transformou como ser humano, assim como a sua arte e a natureza: “Em relação ao meu universo, o que mudou foi que eu pude reler livros e retomar referências. Eu não sou mais aquela Adriana, nem o mundo e nem os oceanos. Essa é a graça, de saber que o presente é tudo o que temos”.

De lá para cá, ela lançou discos ao vivo, gravou turnês e deu aulas em Portugal, na Universidade de Coimbra, no curso “Como Escrever Canções”. Embaixadora da Universidade de Coimbra desde 2015, Adriana Calcanhotto foi professora convidada da Faculdade de Letras em 2017 e 2018, tendo desenvolvido um intenso programa de atividades, desde aulas abertas e ateliês sobre escrita e produção artística até palestras e exposições.

Lembrando que um acordo para limitar o volume mundial de resíduos plásticos foi assinado por 187 países – da Noruega à Nicarágua. O Brasil, assim como Estados Unidos e Argentina, se opôs à iniciativa definida na reunião ocorrida em Genebra (Suíça), que permitiu introduzir emendas principalmente nas convenções de Basileia e Estocolmo para controlar melhor o tráfego internacional e o impacto ambiental do lixo plástico. Brasil é dos que mais produz e menos recicla plástico no mundo.

IG