Três anos de lama e luta
Neste 5 de novembro completam-se três anos do maior crime ambiental da história do país, o rompimento da barragem de Fundão, operada pela mineradora Samarco, que pertence à Vale e à australiana BHP Billiton, duas das maiores empresas do ramo no mundo.
O desastre na região de Mariana (MG) destruiu comunidades inteiras e espalhou uma quantidade enorme de lama de rejeitos minerais ao longo de todo o rio Doce.
Em todo este tempo, os processos de reassentamento e reparação das famílias atingidas e o processo de restauração da biodiversidade depois da passagem da lama ainda seguem a passos lentos. Logo após o rompimento, é bom lembrar, o Greenpeace gerenciou a arrecadação de fundos por meio de dois shows organizados pelo coletivo Rio de Gente para financiar seis pesquisas independentes que avaliaram os diferentes impactos do desastre na natureza e no meio social da região.
A onda de 40 bilhões de litros de lama de rejeitos de minérios composta por metais pesados – como ferro, manganês, níquel, arsênio, entre outras – deixou 21 mortos e se espalhou por quase 700 km da bacia do rio Doce, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, até chegar ao Oceano Atlântico. Os estragos ao meio ambiente foram imensos com a morte de animais, a perda de mata nativa e a contaminação do solo e das águas. Um desses estudos independentes mostrou que a contaminação atingiu até mesmo os lençóis subterrâneos.
As famílias que perderam suas casas tiveram de ser realocadas para a cidade de Mariana, onde os atingidos enfrentam muitas vezes o preconceito de outros habitantes ao serem responsabilizados pela interrupção das atividades da mineradora Samarco na região, que empregava boa parte da população local.
A promessa do reassentamento das comunidades destruídas fica cada vez mais distante. Bento Rodrigues, o distrito mais próximo à barragem, está em reconstrução em novo terreno, com previsão de entrega às famílias em 2020. As comunidades de Paracatu e de Gesteira, no entanto, ainda aguardam o andamento dos projetos para o início das obras.
O Greenpeace, que no aniversário de um ano da tragédia pediu Justiça em um protesto realizado com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ratifica a necessidade de urgência para que providências sejam tomadas para ressarcir as famílias atingidas e compensar os danos ambientais, a maior parte deles irreparáveis. “A Fundação Renova, Samarco, Vale e BHP Billington devem buscar rapidez em sua atuação, em vez da defesa de seus interesses econômicos. O que houve no Rio Doce foi um desastre premeditado pelas empresas e uma consequência esperada quando o estado brasileiro deixa de fortalecer e aplicar a legislação do licenciamento ambiental em nome de interesses privados”, afirma Fabiana Alves, da campanha de Clima e Energia do Greenpeace.
Uma longa espera
Uma situação que muitos acreditavam que seria temporária já se estende por três anos com a alteração completa de seu modo de vida, ocasionando problemas financeiros e de saúde, tanto pela contaminação dos metais presentes na lama quanto pela depressão que atinge boa parte das famílias.
É o caso de Marino D’ Ângelo, 49, que vivia na zona rural de Paracatu. “Eu hoje tomo três antidepressivos. Fiquei com pressão alta, diabetes, até descobrir que eu estava com depressão. Sempre fui uma pessoa ativa, que acordava cedo de manhã e já sabia meu rumo, o que eu tinha que fazer da vida”, conta.
Nos dias seguintes ao rompimento, a Defesa Civil e a Samarco retiraram a família de Marino de sua casa sob o risco de rompimento de outra barragem da empresa, a de Santarém, dentro do mesmo Complexo do Germano. A primeira medida que a empresa ofereceu à família foi ir para um hotel em Mariana, de forma provisória. “Se eu tivesse ido para lá, estava morto hoje, porque eu não conseguiria viver assim. Não é o meu mundo.”
Desde então, ele foi realocado para uma propriedade rural próxima de onde morava, porém com condições muito diferentes para a criação de cabras, porcos e outros animais. “O terreno é cheio de buracos e muito acidentado. Já perdi várias criações. Quando viemos para cá [novo terreno], a Renova tinha alugado só essa casa para mim e eu não podia usar a terra”, explica Marino.
Ele conta que os prejuízos à sua renda são substanciais, inclusive para a produção de leite. Marino foi presidente da associação local por três mandatos. A princípio, imaginou que o período na nova propriedade seria curto, mas logo percebeu que a espera seria bem maior. “A pessoa entra na universidade e leva quatro a cinco anos para se formar no que ela escolher. E nós já estamos quase formados como atingidos, porque já vai para três anos”, compara.
Hoje, ele é membro da Comissão de Atingidos de Paracatu de Cima e uma das vozes ativas pelos direitos das pessoas a receberem indenizações e serem reconhecidas como atingidos por parte da empresa. Apenas em Mariana, estão cadastrados atualmente 3.000 atingidos, com aproximadamente 1.200 dessas pessoas que ficaram desabrigadas. Ao longo da bacia do rio Doce este número é muito maior e quem teve sua vida alterada pela lama ainda sofre para ter seus direitos reconhecidos.
Novo nome, velhos problemas
Após o desastre, em março de 2016, a Samarco criou a Fundação Renova, que passou a ser responsável pela reparação ambiental do rio Doce e socioeconômica das pessoas atingidas, o que inclui o atendimento das provisões necessárias para aqueles que tiveram seu modo de vida afetado pela lama. Na prática, a fundação retira a Samarco de cena na resolução dos conflitos e preserva o nome e as ações da mineradora e suas controladoras, Vale e BHP Billiton. Os atingidos reclamam de aparelhamento da Renova, e criticam o fato de que muitos funcionários das mineradoras tornaram-se dirigentes da fundação que deveria cuidar de seus direitos.
Para o promotor do Ministério Público Estadual em Mariana, Guilherme Sá, a mobilização dos moradores de comunidades como Bento Rodrigues e Paracatu, que criaram comissões para fortalecer a pressão frente às mineradoras, foi essencial para que, a partir de muita luta, fossem conquistados direitos como o aluguel de casas, o pagamento de auxílios financeiros emergenciais e a participação de atingidos nos processos decisórios por meio de assessoria técnica.
Ainda assim, ao longo desses três anos, o Ministério Público tem reunido centenas de casos de pessoas que não são reconhecidas como atingidas. Para Guilherme, esses casos demonstram o descumprimento das empresas de acordos homologados na Justiça. “Tem que ficar muito claro que as empresas não são boazinhas, pelo contrário. Nós tivemos que entrar com medidas judiciais para obrigá-los a cumprir vários acordos”, explica o promotor.
Essa situação se estende de maneira mais dramática por toda a bacia do rio Doce, onde a visibilidade dos impactos da lama é menor e, muitas vezes, nem as próprias pessoas se vêem como atingidas. “Muitas pessoas enxergam como atingidos apenas aqueles que perderam suas casas. Mas existem uma série de situações de pessoas que sofreram outros prejuízos, que a Renova chama de impactados”, explica Guilherme.
A Fundação Renova divulgou em nota que até o dia 22 de outubro foram pagos “cerca de R$ 1,2 bilhão em indenizações e auxílios financeiros”. Afirma ainda que este montante inclui o atendimento de “11.123 famílias em razão dos danos gerais sofridos”, com o pagamento de indenizações finais à 7.732 pessoas.
Este número total de indenizações finais não leva em conta os atingidos de Mariana, onde os processos correm em separado por conta da abertura de uma Ação Civil Pública por parte do MP. A organização dessas comunidades garantiu que elas recebam os auxílios financeiros emergenciais e antecipações (aluguel de casa, indenizações por morte e adiantamentos aos valores dos imóveis e veículos perdidos), porém os atingidos na região não receberam ainda o valor das indenizações finais. O acordo que vai calcular o valor dessas indenizações foi homologado apenas no início deste mês de outubro e estabelece os pagamentos individualizados para os atingidos.
Para isso, o montante será calculado a partir de um cadastro específico – e mais abrangente com relação às perdas materiais e subjetivas – elaborado com a participação dos moradores em conjunto com a Cáritas, entidade religiosa que presta assessoria técnica aos atingidos. “A gente tenta, em primeiro lugar, acabar com o desnivelamento técnico do discurso que existe entre as empresas e os atingidos e, em última instância, o nosso horizonte de atuação é garantir a melhor e maior reparação possível para essas pessoas”, explica Gladston Figueiredo, coordenador do processo de assessoria aos atingidos pela Cáritas.
A própria presença de uma assessoria técnica é uma realidade que acontece apenas em Mariana, e não se estende aos outros municípios ao longo da Bacia. Gladston considera que o novo cadastro é um avanço para garantir os direitos dos atingidos. “Eles participaram do processo de rever esse cadastramento e isso foi uma grande vitória, assim como a possibilidade da Cáritas aplicar esse cadastro porque, repetindo as palavras da juíza, não seria razoável que quem cometeu o crime depois fosse cadastrar as famílias”.
Outra conquista dessas comunidades é a condição de inversão do ônus da prova, ou seja, os atingidos são identificados a partir de critérios autodeclaratórios, obrigando à Fundação Renova a provar na Justiça caso contestem a condição destas pessoas como atingidos.
Ainda assim, o promotor Guilherme Sá critica a forma como a Fundação Renova, que deveria representar tanto as empresas quanto os atingidos, recebe os pedidos por reconhecimento e indenização. “E eles usam da inocência, da situação de vulnerabilidade das pessoas para intimidar, chegando ao disparate de falar: ‘olha, se você for no MP, aí que você não vai ter [o auxílio] mesmo’. Até isso nós já escutamos. Por que fazer isso com as pessoas que já sofreram tanto? Por que, na dúvida, não conceder o auxílio?”, questiona o promotor.
Quilômetros de negligência
O problema se repete ao longo da bacia do rio Doce. O esquecimento dificulta a situação de quem teve sua vida transformada pela lama. As empresas responsáveis pelo crime definem quem se enquadra ou não na condição de atingido e muitas pessoas que tiveram sua vida completamente alterada não receberam qualquer tipo de pagamento após três anos.
É o caso de Bruno Rodrigues Luciane que, desde os 12 anos de idade, é pescador na região de Aracruz, no Espírito Santo, uma das áreas mais afastadas onde a lama chegou. Ele conta que ainda hoje não conseguiu recuperar a renda que obtinha antes do rompimento da barragem e foi impedido de receber qualquer valor por não possuir a carteira de pescador profissional, que estabelece o cadastro oficial no Registro Geral da Pesca. “Eles alegam que tem que ter uma carteirinha. Acontece que a gente que é pescador, vive da pesca, e nunca se preocupou em ter carteirinha. A gente tava preocupado em trabalhar para dar sustento para a família”, lamenta.
A carteirinha, ele explica, foi uma exigência da Samarco, na época, para que as pessoas recebessem as indenizações: “Muita gente que recebeu nunca foi pro mar. E uns que realmente deveriam receber, que vivem do mar, não estão recebendo”. A situação é mais dramática já que foi delimitada uma área em que os pescadores não podem atuar, abaixo dos 20 metros, para evitar o consumo de peixes com risco de contaminação.
Como a pesca na região é costeira, os trabalhadores tiveram que navegar distâncias maiores para conseguir equiparar a quantidade de peixe, ocasionando um custo de despesas maior e viagens mais longas. “Eu falo por mim, eu tenho 38 anos de idade, e não recebi. Tenho minha família pra cuidar. Agora, tem outros ali que tem 60 anos, não conseguiram aposentar ainda, necessitam desse dinheiro e não conseguem, muitas vezes, segurar 12 dias no mar num barco pequeno. É complicado”, protesta Bruno.
A saúde ainda preocupa em Barra Longa
Outro município afetado profundamente foi Barra Longa (MG), uma zona urbana de pouco mais de cinco mil habitantes construída às margens do rio Gualaxo do Norte. Quando a lama começou seu trajeto, ela percorreu a extensão do Gualaxo e inundou o centro de Barra Longa. Até hoje, é possível observar a marca da lama em alguns pontos da cidade e o rio jamais retomou sua coloração original.
A invasão da lama mobilizou os esforços de moradores e a força-tarefa das mineradoras para a limpeza das ruas e retirada de rejeitos. Parte do material foi transportado da zona central, às margens do rio, para a parte mais alta – e mais pobre – da cidade, em um centro de exposições. Nesse período, caminhões tomaram a paisagem e levantaram a poeira dessa lama de rejeitos, já seca, que permaneceu presente no ar sendo inalada pelos moradores.
As consequências da convivência com essa poeira de lama para a saúde dos atingidos na região foi avaliada no estudo independente para a área de Saúde, financiado com doações, e realizado pela coordenadora do Instituto Saúde e Sustentabilidade, a médica Evangelina Vormitagg. Posteriormente, ela realizou exames de sangue de 11 pacientes em março de 2017 para identificar a presença de metais e outras substâncias em seu organismo. Os resultados são preocupantes: todos os pacientes apresentaram níveis elevados de níquel e, metade deles, de arsênio.
Para a pesquisadora, os resultados não receberam a devida atenção por parte das empresas e do poder público. “Nem o níquel e nem o arsênio são metais que você encontra no organismo. A presença deles em níveis elevados mostra que se trata de uma intoxicação, o que significa que essas pessoas estão expostas a locais que devem estar contaminados e, até hoje, não existe nenhuma pesquisa que mostre onde há o risco de exposição.”
Ela explica que a primeira medida a ser tomada diante do indício de intoxicação seria afastar as pessoas do foco de exposição aos metais. “Nem a Fundação Renova e nem o governo de fato querem fazer ou terminar a pesquisa necessária por conta dos resultados que virão. O que eles puderem adiar, vão adiar. Até agora, as pesquisas na área de saúde foram feitas única e exclusivamente por iniciativa da sociedade civil”, diz Evangelina.
A presença de níquel e arsênio pode ser responsável por uma série de problemas de saúde no futuro. Existem os sintomas inespecíficos, como por exemplo uma diarreia, dores nas pernas e no corpo, que não podem ser diretamente atribuídos à contaminação. A longo prazo, caso as pessoas não recebam o tratamento adequado e continuem expostas aos rejeitos na região, os metais podem provocar insuficiência hepática, insuficiência renal, problemas de coração, de entupimento de artérias, alterações no sistema imunológico.
Simone Silva é professora e vive na parte mais alta de Barra Longa, a uma certa distância do rio Gualaxo, por onde a lama chegou. Ainda assim, os efeitos da lama de rejeitos – que foi usada para calçar a cidade – e da poeira que se espalhou pelo ar atingem diretamente sua filha Sofya, de apenas três anos.
Ela foi uma das pessoas examinadas na pesquisa de Evangelina e teve a presença de metais constatada no organismo. “Após apresentar diarreia, logo após a chegada da lama, ela começou a ter crises respiratórias mesmo. Ficou em Fonte Nova internada com infecção respiratória gravíssima e, de lá pra cá, nunca mais Sofya descansou. Ela é uma criança que está com três anos e toma anti-alérgico todos os dias”, desabafa a mãe.
Simone luta para que a Fundação Renova reconheça que sua família foi atingida e receba o auxílio por parte das empresas. Evangelina Vormitagg confirma a necessidade de auxílio das empresas. “Essas pessoas, que têm comprovadamente já o metal em seu organismo, precisam ser acompanhadas a vida toda, mas nem esses pacientes que tiveram o exame positivo foram reconhecidos como atingidos”, diz a médica.
A Fundação Renova afirma, por meio de nota, que “segue as diretrizes da Câmara Técnica de Saúde e das Secretarias municipais e estaduais e do Ministério da Saúde”. Ainda declara que “disponibiliza 23 profissionais da área de saúde em Barra Longa e apoia a gestão pública dos municípios com ações que visam fortalecer as estruturas municipais existentes, tanto no atendimento clínico quanto na proteção social.”
Desde a realização dos exames, em março do ano passado, Simone busca o reconhecimento de seus direitos de reparação junto às mineradoras, por enquanto ainda sem sucesso. “Porque eu sou atingida mesmo, de todas as maneiras. Eu sou atingida quando a comunidade onde nasci foi destruída. Sou atingida quando recebo um exame que diz que meus filhos estão condenados pelo resto da vida.”
Modos de vida que não voltam mais
“A maior perda são os laços comunitários, porque nós fomos para Mariana e hoje está todo mundo ‘esparramado’. Aquela convivência de amizade mesmo vai se perdendo quanto mais tempo vai passando. Claro que a gente forma mais amizades, mas esse laço da comunidade pequena, da liberdade, não é a mesma coisa do que você estar em uma cidade grande.”
Quem diz isso é o apicultor e pedreiro Expedito Lucas da Silva, mais conhecido como Caé, morador da comunidade de Bento Rodrigues que foi completamente destruída e soterrada pela lama em novembro de 2015. Hoje, o distrito mais parece uma cidade-fantasma, sem moradores, onde as únicas lembranças de uma tranquila vila mineira são os escombros de casas como a de Caé. A amplitude desses impactos para além dos prejuízos financeiros também foi tema de uma das pesquisas independentes financiadas por doações que avaliou os impactos em comunidades da foz do Rio Doce, no Espírito Santo.
A construção do novo distrito de Bento Rodrigues será realizada em um terreno de 375 hectares de propriedade da Fundação Renova, na região de Lavouras, aproximadamente 16 km de distância da antiga localização da comunidade. A construção foi iniciada apenas em agosto deste ano, com prazo de dois anos para a entrega de 240 moradias para as 225 famílias cadastradas, além da construção da infraestrutura pública da cidade. A Renova, portanto, afirma que o término do reassentamento se dará no segundo semestre de 2020.
Caé não vê a hora de voltar a sentir essa relação de amizade com a qual se acostumou na antiga Bento Rodrigues que aprendeu a amar. “A chave mesmo, para nós, é o reassentamento. Porque sem o reassentamento é como se você estivesse sem rumo, você não sabe que caminho seguir. E a comunidade? A comunidade precisa estar de volta, nós precisamos trazer a comunidade de volta.”
Uma cena resume bem a esperança de Caé para retomar a vida simples e os laços afetivos e comunitários que os moradores das comunidades atingidas, sejam elas mineiras ou capixabas, urbanas ou rurais, aguardam há tanto tempo e com tanta luta. Ele conseguiu voltar para sua casa, soterrada pela lama, apenas um mês depois do rompimento. Aflito, ele sabia bem o que estava procurando: “Vim pensando em resgatar algumas lembranças, alguma recordação, alguma coisa pessoal, que não tem volta, que é coisa única. Eu tinha um grande apego por uma foto da minha mãe e consegui recuperá-la. A minha mãe já morreu, então eu tenho essa lembrança.”